6 de jul. de 2013

[Crônica] LUIS FERNANDO VERISSIMO – Retrato falado




[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]


LUIS FERNANDO VERISSIMO, nasceu em Porto Alegre, em 1936. No ano de 1969 o jornal Zero Hora começa a publicar as suas crônicas. Nesse mesmo ano começou a trabalhar para a MPM Propaganda, como redator de publicidade. Mais tarde suas crônicas são publicadas nos jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora.

Publicou algumas dezenas de livros: O popular (J.Olympio, 1973), Ed Mort e outras histórias (L&PM, 1979), O analista de Bagé (L&PM, 1980), A velhinha de Taubaté (L&PM, 1983), Aventuras da Família Brasil (quadrinhos, L&PM, 1985), O marido do doutor Pompeu (L&PM, 1987), O suicida e o computador (L&PM, 1992), Comédias da vida privada (L&PM, 1994), Américas (Artes e Ofícios, 1994), entre outros.

Segue Retrato falado, de Luis Fernando Verissimo (in Verissimo, Luis Fernando. Amor brasileiro. 5ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 45-47):


[ESPAÇO DA CRÔNICA]


 RETRATO FALADO
    [ LUIS FERNANDO VERISSIMO ]


UMA DAS COISAS que eu não entendo é retrato falado. Em filme musical americano o retrato falado sai sempre a cara do criminoso, até o último cravo. Mas na vida real, que nada tem de filme americano, o retrato falado nunca tem o menor parentesco com a cara do cara sendo preso.

– Atenção. Aqui está o retrato falado do homem que estamos procurando. Foi feito de acordo com a descrição das dezessete testemunhas do crime. Decorem bem a sua fisionomia. Está decorada?

– Sim senhor.

– Então procurem exatamente o contrário deste retrato. Não podemos errar.

Imagino os problemas que não deve ter o artista encarregado dos retratos falados na polícia. Um homem sensível, obrigado a conviver  com a imprecisão de testemunhas e as rudezas da lei.

– O senhor mandou me chamar, Inspetor?

– Mandei, Lúcio. É sobre o seu trabalho. Os seus últimos retratos falados...

– Eu sei, eu sei. Mas é que eu estou numa fase de transição, entende? Deixei o hiper-realismo e estou experimentando com uma volta a formas orgânicas e...

– Eu compreendo, Lúcio. Mas da última vez que usamos um retrato falado seu para pegar alguém, a turma prendeu um orelhão.

O pior deve ser as testemunhas que não sabem descrever o que viram.

– O nariz era assim, um pouco, mais ou menor como o seu, Inspetor.

– E as sobrancelhas? As sobrancelhas são importantes.

– Sobrancelhas? Não sei... como as suas, Inspetor.

– E os olhos.

– Os olhos claros. Como os...

– Já sei. Como os meus. O queixo?

– Parecido com o seu.

– Inspetor, onde é que o senhor estava na noite do crime?

– Cala a boca e desenha, Lúcio.

E há os indecisos.

– Era chinês.

– Tem certeza?

– Bom, ou era chinês ou tinha dormido mal.

E deve haver a testemunha literária.

– Nariz adunco, como de uma ave de rapina. A testa escondida pelos cabelos em desalinho. Pelos seus olhos, vez que outra, passava uma sombra como uma má lembrança. A boca era de uma sensualidade agressiva mas ao mesmo tempo tímida, algo reticente nos cantos, com uma certa arrogância no lábio superior que o lábio inferior refutava e o queixo desmentia. Narinas vividas, como as de um velho cavalo. E isso que eu só o vi por dois segundos.

Os sucintos.

– Era o Charles Bronson com o nariz da Maria Alcina.

– Tipo Austregésilo de Athayde, mas com bigode mexicano.

– Uma mistura de cachorro Boxer, comandante da Varig e beque do Madureira.

– Bota aí: a testa do Remy Gorga Filho, o nariz do Giscard D’Estaing, a boca do porteiro do antigo Fred’s e o queixo de Virginia Woolf. Uma orelha da Jaqueline Onassis e a outra, estranhamente, do neto do Getty.

– A Emilinha Borba de barba  depois de uma mau voo na Ponte Aérea com o Nelson Ned.

E há as surpresas.

– Bom, era um cara comum. Sei lá... Nariz reto, boca de tamanho médio, não tinha bigode... Ah, e um olho só, bem no meio da testa!

O Ciclope ataca outra vez.

Experimente você dar as características para o retrato falado de alguém.

– Os olhos da Sandra Bréa. Isso. Um pouco menos sobrancelha. O nariz da Clare Bloom. De 15 anos atrás. A boca da Cláudia Cardinalle. O queixo da Elizabeth Savala. Um seio da Laura Antonelli e outro da Sydne Rome. As pernas da Jane Fonda.

– Feito. Mas quem é essa?

– Não sei. Mas se a encontrarem, tragam-na para mim, depressa. E viva!



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